Mesmo sem internet via satélite e com bloqueio dos EUA, Havana tem programa de aluguel de bikes

Gabriel Vera Lopes

Localizada no emblemático Paseo del Prado, a entrada do edifício Velo Cuba é uma verdadeira febre. Pessoas entram e saem constantemente. Cubanos e estrangeiros chegam com a intenção de alugar uma bicicleta ou fazer perguntas sobre reparos. Atrás da entrada de vidro, um grupo de moças trabalha na montagem de uma bicicleta. Detrás de um escritório, um rapaz descreve diferentes rotas em um mapa da cidade enquanto as mostra a um grupo de estrangeiros.

Quando o pôr do sol começa a dissipar o calor escaldante de Havana, o Paseo del Prado começa a se encher de jovens. Dançarinos de break se misturam com as piruetas ousadas que outros jovens praticam em skates e bicicletas. Mais de um recebe os aplausos dos transeuntes, que ficam maravilhados com os shows.

 

“Tenho 47 anos e ando de bicicleta há 43 anos”, diz Nayvis Díaz Labaut com um sorriso para o Brasil de Fato. “Nasci em Havana, mas cresci na Ilha da Juventude, uma pequena ilha ao sul de Cuba. Lá, até hoje, todo mundo ainda anda de bicicleta. Lembro-me de andar na bicicleta da minha mãe quando era muito jovem: para o trabalho, para a escola, para fazer compras. Foi assim que cresci e nunca parei de andar de bicicleta.”

 

Laubat é diretora e fundadora da Velo Cuba, uma empresa liderada por mulheres que desenvolve diferentes atividades relacionadas ao ciclismo: desde o conserto e o aluguel de bicicletas até o gerenciamento do sistema de bikes públicas de Havana – uma atividade que elas realizam em conjunto com o Escritório do Historiador.

 

O uso de bicicletas se tornou muito popular em Cuba durante a década de 1990. Naquela época, após o colapso da União Soviética, Cuba atravessou uma das crises mais agudas de sua história. O “período especial” – como era conhecido na ilha na época – praticamente paralisou o transporte devido à falta de combustível. Essa situação fez com que muitas pessoas buscassem novas maneiras para realizar seus deslocamentos.

 

“Quando vim para Havana para estudar no pré-universitário e na universidade, trouxe minha bicicleta. Naquela época, havia várias ciclovias que ligavam a cidade. Mais tarde, infelizmente, isso se perdeu um pouco. Eu estava estudando engenharia industrial e, de minha casa até a universidade, eu pedalava cerca de 20 km todos os dias. Conheci Havana de bicicleta. Pedalei por lugares que nunca teria conhecido se não fosse pelo amor que sentia por me perder na cidade”, lembra Labaut.

 

A construção de um sonho

 

Em 2013, Cuba deu início a um processo de reforma econômica e política que continua a se aprofundar até hoje. Naquele ano, foi aberta a possibilidade do trabalho autônomo e, com o passar dos anos, diferentes formas de gestão econômica não estatal começaram a ser incentivadas.

 

Naquela época, Labaut trabalhava como gerente de recursos humanos em instalações relacionadas ao turismo. Seu trabalho em navios de cruzeiro não só lhe permitia conhecer muitos lugares do mundo, mas também desfrutar de um emprego bom e estável que lhe permitia comprar um carro – algo que para muitas pessoas era difícil de conseguir.

 

“Vendi o carro que tinha e, com o dinheiro, decidi abrir uma pequena loja de reparo de bicicletas. Minha família e meus amigos me apoiaram, mas também acharam que eu tinha ficado um pouco louca. Eles só puderam desfrutar do carro por um curto período de tempo”, lembra ela com uma risada.

 

Com o dinheiro obtido com a venda do carro, Labaut comprou as primeiras ferramentas que fariam parte da oficina. O bloqueio que Cuba sofre por parte dos Estados Unidos faz com que esse tipo de material não seja vendido na ilha, de modo que ela teve de obtê-lo de pouco em pouco por meio de amigos que viajavam para o exterior. Quando tudo estava pronto, ela propôs a uma amiga ciclista que trabalhasse com ela. A ideia de duas mulheres trabalhando em uma oficina mecânica a surpreendeu. No entanto, Labaut conseguiu convencê-la.

 

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“Eu não tinha pensado nisso. Foi ela quem ficou surpresa e me perguntou se eu achava que era uma boa ideia. A mecânica era vista como ‘coisa de homem’. Não havia lugares assim de mulheres. E, graças a Deus, não nos importamos. Abrimos a loja em 12 de setembro de 2014”, lembra ela com alegria.

 

Rapidamente, a oficina ficou famosa. Localizada em um ponto central de Havana, atrás de uma sorveteria emblemática da cidade chamada Coppelia, o local atraiu imediatamente a atenção dos vizinhos que queriam conhecer esse novo lugar.

“Todos diziam: ‘Ah, abriram uma loja de mulheres que consertam bicicletas’. E muitas pessoas entravam por curiosidade. Mas quando chegavam, percebiam que havia muito profissionalismo. E assim, de boca em boca, a loja se tornou famosa. Naquela época, não havia lojas de bicicletas. Em geral, não havia ferramentas e as pessoas que consertavam bicicletas às vezes não tinham nada além de um bico de papagaio com o qual conseguiam fazer alguns reparos”, diz a fundadora da Velo Cuba.

 

A oficina ficou tão famosa que, poucos dias após a inauguração, elas não conseguiam atender à demanda de trabalho. Foi assim que, apenas 20 dias após a abertura, tiveram que contratar mais uma pessoa para ajudá-las.

 

Dando a volta por cima na ilha

 

De 2014 a 2017, transcorreu um breve mas intenso período conhecido como “degelo” nas relações entre os EUA e Cuba. Durante o governo de Barack Obama, Washington começou a mudar gradualmente sua estratégia em relação a Cuba, desmantelando alguns dos aspectos mais pesados do bloqueio contra a ilha. O levantamento de algumas das sanções que a Casa Branca mantinha unilateralmente contra Cuba permitiu que a ilha registrasse um enorme aumento no turismo – sua principal indústria – e, dessa forma, melhorasse sua economia. No entanto, com a chegada de Donald Trump ao governo, os EUA retomaram sua tradicional política de sufocamento contra Cuba, que continua até hoje.

 

“Com a chegada de mais turistas a Cuba, as pessoas começaram a vir à ilha para fazer turismo de bicicleta. Elas chegaram para percorrer o país em suas bicicletas. Muitas delas vinham à minha oficina em busca de peças de reposição ou conselhos. Conversando com elas, comecei a perceber que muitas vezes era muito caro para elas levarem suas bicicletas de volta para seus países. Os custos de transporte e envio tornavam isso muito caro, então comecei a oferecer a esses turistas a compra de suas bicicletas. Eles vinham com suas bicicletas e, no final da viagem, era mais conveniente para eles vendê-las”, diz Labaut.

“Eram bicicletas de melhor qualidade do que as disponíveis aquí. Aquí não se conseguia comprar bicicletas novas. Depois que conseguimos comprar algumas bicicletas, em 2015, iniciamos o serviço de aluguel de bicicletas”.

 

Existem aluguéis de três dias para quem quiser fazer um passeio por Havana a 45 dias para aqueles que decidem percorrer toda a ilha de bicicleta. A Velo Cuba estima que, de janeiro de 2015 a abril de 2023, eles tiveram uma média de 350 clientes por temporada.

 

“Não há nada como andar de bicicleta pela ilha. É realmente uma bela experiência. Cuba é muito bonita, cheia de paisagens diversas. Muitas vezes, há aqueles que ficam presos à imagem do hotel e da praia. Mas há realmente muitas coisas para aqueles que amam a natureza”, recomenda Labaut.

 

Brincando na rua

 

O rápido crescimento da Velo Cuba permitiu que fosse possível abrir uma segunda oficina em Havana Velha.

 

“Quando cheguei a Havana Velha, percebi que havia muitas crianças brincando na rua. Então, comecei a organizar atividades com elas. Nas tardes de sábado, fechávamos a rua Obrapía, entre Habana e Compostela, e começávamos a brincar com bicicletas com as crianças. Naquela época, comecei a comprar bicicletas para crianças. Cheguei a comprar 6, embora tenha sido um massacre porque havia cerca de 20 crianças. Então você pode imaginar. Mas não importava, nós nos divertíamos muito”, diz Labaut.

 

As atividades com as crianças do bairro tornaram Labaut e suas oficinas cada vez mais famosas. Foi assim que o jornal Juventud Rebelde se aproximou para entrevistá-la e conhecer a experiência da Velo Cuba. A entrevista foi lida pelo vice-presidente do Conselho de Estado na época, que rapidamente entrou em contato com o Escritório do Historiador – uma entidade dedicada à preservação do patrimônio em Havana Velha – e propôs que eles realizassem um projeto comunitário conjunto.

 

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“A diretora do Escritório do Historiador veio me visitar e propôs que a Velo Cuba administrasse um sistema público de bicicletas. Esse tipo de serviço só existia nas grandes cidades europeias. Era um desafio fazer algo assim. Além disso, nos lugares onde esse tipo de serviço existe, ele é gerenciado pela internet. E aquí, até hoje, não temos internet via satélite que nos permita automatizar o serviço. Portanto, tivemos que descobrir como configurar algo assim. Mas sempre tivemos o compromisso criativo de fazer com que os projetos do Vela Cuba funcionassem, então não duvidamos e começamos a trabalhar”, lembra Labaut.

 

Assim, em novembro de 2018, o projeto de bicicletas públicas em Cuba, chamado Ha`Bici, foi inaugurado em Havana Velha – coincidindo com as comemorações do 500º aniversário da cidade. O Escritório do Historiador ficou encarregado de contratar a equipe e comprar algumas bicicletas, enquanto a Velo Cuba elaborou o projeto e assumiu a liderança.

 

“Como tivemos que preparar todos os funcionários que trabalhariam conosco, ensinando-lhes tudo, desde como gerenciar o aluguel de bicicletas até como consertá-las, decidimos criar a primeira escola pública de bicicletas em agosto de 2018. Em outubro deste ano, estamos indo para a 10ª edição. Nessas escolas, treinamos pessoas para trabalhar conosco ou para montar seus próprios projetos ligados à mobilidade ciclística”, diz.

 

Atualmente, o sistema de bicicletas públicas desempenha um papel fundamental em Havana. A crise econômica em Cuba está mais uma vez afetando o fornecimento de combustível. Como resultado, o transporte está severamente limitado. Além disso, o bloqueio torna muito difícil para Cuba importar peças de reposição quando alguma parte de sua frota de ônibus públicos é danificada.

 

Além disso, com o surgimento de micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) no setor privado, muitos jovens utilizam esse sistema para trabalhar durante a jornada de trabalho como motoristas de entrega, mensageiros ou simplesmente para se movimentar pela cidade.

 

No entanto, a Velo Cuba enfrenta os mesmos desafios que todos os outros na ilha. Toda vez que uma bicicleta quebra, eles precisam descobrir como consertá-la com os elementos e as peças de reposição disponíveis.

 

“É como os carros antigos da década de 1950 que você vê em Cuba. Nossos mecânicos têm de aprender a consertar tudo, desde peças de 70 anos até os modelos mais novos disponíveis. Eles precisam descobrir como adaptar as peças para evitar que nossas bicicletas parem de funcionar. Nem sempre é fácil. Recentemente, tivemos a oportunidade de viajar para um congresso internacional de gerenciamento de sistemas de bicicletas públicas. Quando contamos nossa experiência, eles não acreditaram… As dificuldades que temos de superar e, ainda assim, aquí estamos nós… fazendo isso”, diz a diretora da Velo Cuba.

 

Atualmente, o sistema de bicicletas públicas realiza várias atividades comunitárias. Desde ações em círculos infantis e escolas com crianças, até atividades de saúde com idosos. Além de dar continuidade aos projetos de ensino de conserto de bicicletas.

Fabricado em Cuba

 

A inquietude de Labaut e suas companheiras nunca parou. Em 2022, elas ganharam um concurso internacional que lhes permitiu realizar uma série de cursos para construir bicicletas feitas de bambu. Cuba produz bambu em Pinar del Río, de modo que essa experiência é uma aposta para que no futuro eles consigam substituir as importações e criar uma cadeia produtiva na ilha.

 

A terceira edição do curso de Fabricação de Bicicletas de Bambu terminou em meados de julho. Uma das características especiais do curso foi o fato de ser voltado para a comunidade surda. A equipe pedagógica da Velo Cuba teve a oportunidade de trabalhar com a comunidade surda, por meio da colaboração de vários intérpretes de Língua de Sinais e da Associação Nacional de Surdos de Cuba (ANSOC).

 

“Foi uma bela experiência em que aprendemos muito. Estamos sempre empenhados em criar espaços para a integração e a não discriminação. E é sempre uma nova experiência de aprendizado”, entusiasma-se.

 

O sonho de construir uma fábrica de bicicletas ainda está sendo moldado na Velo Cuba por meio do aprendizado diário. Há muitas dificuldades a serem superadas, desde a obtenção de financiamento até a obtenção dos equipamentos. Mas, como elas dizem: seus sonhos já estão pedalando.

 

Edição: Thales Schmidt